A perda de um filho

10-08-2022

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, ocorreram um total de 163 mortes neonatais, no período de 2019, em Portugal, em função de diversas causas (desde perturbações relacionadas com a duração da gravidez e com o crescimento fetal; hipoxias intrauterinas; infeções respiratórias do recém-nascido; complicações decorrentes do trabalho de parto, etc.).  Quantos são os fetos que nascem sem vida ou os bebés que morrem na primeira semana de vida por cada 1.000 nascimentos com ou sem vida? À resposta a esta questão, a PORDATA refere que, em 2020, houve uma percentagem de 3.3% casos de mortalidade perinatal e, por cada 1000 nascimentos, uma percentagem de 1.7% casos de bebés que morrem durante o primeiro mês de vida. 

Nota: Segundo a Organização Mundial da Saúde, o período perinatal refere-se ao período que decorre entre as 22 semanas completas (154 dias) de gestação e termina após os sete dias completos pós-nascimento. Já o período neonatal começa aquando do nascimento e termina após 28 dias completos após o nascimento.

Vamos falar, agora, no que podemos encontrar para além dos números. 

Vamos falar dos pais que perdem o filho. Seja durante o período perinatal ou neonatal. Fico, por agora, só por aqui. Mas, acho (não sei!), que voltarei a este tema. Para escrever (apenas, escrever... ou, talvez, tentar escrever) sobre os pais que perdem os seus filhos (sem considerar, em exclusivo, o período a que me proponho refletir aqui). Haverá experiência mais "enlouquecedora", em termos de dor, do que a perda de um filho?

Quando se perde um filho, não se perde "só um filho". Perdemos os pais que (nos) fomos imaginando para eles. Perdemos os filhos que iríamos descobrir ao longo do seu crescimento. Perdemos os sonhos que desenhámos enquanto os sentíamos crescer, dentro de nós (seja num plano biológico, para a mãe, seja num plano mental, emocional e simbólico, em ambos os pais).  Quando perdemos um filho, não perdemos só um filho! "Morre", irremediavelmente, um bocadinho de cada mãe/pai. Com eles. Perdemo-nos. 

Quando se perde um filho, seja durante a o período perinatal seja no período neonatal (uma perda será, sempre, uma perda), por vezes é difícil, para os que rodeiam os pais e que gostam deles, perceberem que se encontram num verdadeiro processo de luto. Mesmo quando nos encontramos perante perdas espontâneos em semanas precoces da gestação. Magoa sempre. Não vale a pena "medirmos" dores, pois não? Cada um terá o seu modo de a sentir e de elaborar. 

Por vezes, e sem querer, dizem: os abortos (quando estes ocorrem) são mais frequentes do que imaginamos (é verdade, mas!); que, diante de uma perda de um bebé (já em semanas avançadas da gestação) "são jovens" e haverão de ter mais oportunidades de terem filhos (é verdade, mas!); que (no caso de terem) terão sorte por já terem filhos (é verdade, mas!); que não conseguirão criar muitas memórias com os bebés (será? e todas as que idealizaram e que nunca terão? O que farão a todas essas memórias?) e que, talvez por isso, seja um bocadinho mais "fácil" superar (aqui discordo, mas!); que o tempo vai ajudar (será que é só o tempo?). Bem sei que dizemos estas frases com a melhor das intenções e que, naturalmente, serão proporcionais à nossa dificuldade de nos imaginarmos a passar pelo mesmo (por mais empatia que tenhamos). Ainda há pouco tempo (e já tenho escrito sobre isso) dizia a alguém que, muitas vezes, os Outros passamos a ser nós mesmos. E lá caímos no lugar comum..."não acontece só aos outros"! 

Quando se perde um filho, perde-se, para sempre, esse filho. Perde-se a possibilidade de o ver crescer. Perde-se a possibilidade de crescerem com ele. Perde-se a possibilidade de o imaginarem (para além do que imaginaram). Perde-se. Perdem-se. Perde-se. E sentem vergonha. Vergonha, no caso das mães, de não terem sido uma "casa uterina" segura para o proteger. Vergonha por se sentirem menores. Incapazes. Sentem-se, por vezes, "uma vergonha". Custa-lhes olhar para os outros. Culpa. Culpa. O que poderia ter feito para. O que fiz para. Vergonha. Vergonha. Culpa. Dificuldade em conseguirem olhar para o espelho e verem, nesse duplo que serão, a tristeza profunda em que se sentem. Pai e mãe. Têm medo. De não conseguirem amar de novo (em todas as facetas das suas vidas). E, nos casos em que assim acontece, ainda têm o outro filho. Que salva (é verdade. mas que não pode ter e/ou sentir ter essa "missão"). E lhes lembra, tantas vezes, que, também ele, perdeu o irmão. Sentem raiva. Acham, os pais, que nunca mais irão rir.  Porque se correm o risco de rir, choram de mágoa por ousarem sentir  qualquer resquício de alegria. De felicidade. É paradoxal com a dormência em que se sentem. 

Dizem que o tempo ajudará. Tenho pensado muito nisto. E acho que não ajuda. Não é só o tempo. Que nos vale o tempo se não tivermos relações que nos salvem? Que nos acarinhem e nos façam "reabilitar" nesse tempo que dói? Acho, genuinamente, que só conseguimos encontrar um sentido para a dor quando sentimos que temos com quem sentir essa mesma dor. Caso contrário, o tempo tornar-se-ia enlouquecedor para qualquer um de nós. Nunca, mas nunca, conseguiremos encontrar as palavras certas para podermos aconchegar um pai/mãe em luto. Porque, quando falamos em morte gestacional ou neonatal, é disso que se trata. De um luto. E não podemos subvalorizar. Perder um filho pequenino, com prematuridade severa, por exemplo  (que nasce a lutar pela vida, quando nasce a lutar....) magoa muito. Causa ferida. Produz cicatrizes profundas. E interpela a que, um dia, possamos encontrar um sentido para essa mesma dor. Um caminho. Que se faz a diferentes velocidades. Que se faz de diferentes modos. Que não passa só com o tempo. Que nunca passará. Por mais que consigamos encontrar o nosso caminho! E havemos de o encontrar! Assim tenhamos os nossos perto de nós!

Quando se perde um bebé, morre-se, sempre, um bocadinho (acredito que, mesmo quando a perda ocorre nas primeiras semanas de gestação, o mesmo acontece - ainda que com diferentes configurações na forma como o elaboramos. Seja como for, imaginem as famílias que se deparam com múltiplos abortos espontâneos. Terão dúvida acerca do verdadeiro processo de luto que isso implica?). 

E, para lá do Tempo, serão as pessoas - que envolvem os pais e que lhes devolvem uma imagem mais bonita de si mesmos, quando se (voltam) a olhar ao espelho - que os salvarão.  Não precisam de palavras certas. Mas, apenas, de sentirem que estamos próximos deles. Respeitando o ritmo do seu luto. Não apressando os ponteiros do relógio para ficarem bem...rapidamente. 

Estes bebés (nascendo, ou não, com vida) não são, como me dizia uma mãe, "fantasmas". Eles foram sonhados. Pelos seus pais. Portanto, existiram. Nasceram. E, quando se nasce para partir, dói muito. Porque partiram eles. E uma parte deles mesmos. A outra parte de si (pai/mãe) que fica? Vai (re)aprendendo a viver. E a encontrar um sentido (sem porquês) para poderem viver. Sem eles. E, talvez, quem sabe, um dia, essa mesma lembrança (dos filhos que perdem) seja uma memória doída à qual voltam (por vezes). Sem lágrimas. E com lágrimas. Mas com o coração sempre pronto para os amar. Amar a ideia de os amar. Porque os não têm. Ainda que tenham. Não se esqueçam que os sonharam durante muito tempo, antes de partirem. Acho que os pais nunca os deixarão ir. E que terão medo de, algum dia, se poderem esquecer das feições deles (nos casos em que tiveram a possibilidade de se despedirem, fisicamente, dos seus bebés). Os filhos nunca morrem. Por mais que morram. Eles serão dos seus pais. De quem os sonhou. Para sempre.

Ana Carolina Pereira

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